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terça-feira, 26 de abril de 2016

A música e a cultura do brincar


Quando a televisão entrou na sala de casa, a música foi embora. Deixou a roda que era formada pelas crianças no quintal, nunca mais foi tomar banho de chuveiro, saiu da cozinha à beira do fogão. Para a educadora Lydia Hortélio, pesquisadora da cultura da infância, a tecnologia da telinha apagou o brilho da música que existia nas famílias. Se hoje existe uma obrigatoriedade da iniciação musical nas escolas, ela não vê com bons olhos. A professora Lydia é a convidada especial do “IX Encontro de Educação Musical da Unicamp”, que nesta edição discute o tema “Educação musical e tradições populares no Brasil”.
Realizado até de 18 a 20 de abril em salas do Instituto de Artes (IA), auditório da Adunicamp, Centro de Convenções e Faculdade de Educação (FE) o evento foi organizado por docentes e discentes do curso de licenciatura em Música da Unicamp e trouxe além da professora, outros convidados como Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor aposentado da Unesp, em São Paulo, e Lucilene Silva, coordenadora do Centro de Formação de Educadores Brincantes da OCA- Escola Cultural. Os convidados participam de workshops, oficinas, mesas-redondas, comunicações orais e apresentações artísticas. A abertura, por exemplo, foi com o coral de mulheres Açucena.
Para os alunos, vale muito. “É a oportunidade para os alunos entrarem em contato com diversas pessoas que atuam na rede de ensino ou músicos profissionais, pesquisadores da área de música enfim, é uma troca de informação muito rica”, afirmou a aluna Patrícia Patrícia Kawaguchi César que é da organização.
De acordo com a coordenadora geral do encontro, Adriana Mendes, a escolha do tema do encontro surgiu a partir do contato de alunos do curso que começaram a atuar em escolas com a arte do maracatu. “Imagine jovens de um contexto urbano como é Campinas, aprendendo o maracatu e envolvidos de corpo e alma no tema. Nós achamos isso muito interessante e digno de um debate, pois há toda uma discussão por detrás dessa vivência com o preconceito contra as africanidades”.
Outro ponto que motivou a escolha do tema das tradições populares, acrescenta a coordenadora, é a constante transformação por que passa a cultura popular e o acesso especialmente à música da infância, as brincadeiras e cantigas das crianças. “Nós percebemos que muitos alunos chegam à universidade sem terem brincado, sem terem tido acesso aos jogos e brinquedos da infância, sem saber cantar uma canção. Como serão professores sem isso?”, questiona Adriana.
Esta tem sido a preocupação da professora Lydia Hortélio, que conversou mais detalhadamente com o Portal Unicamp, antes de começar suas oficinas. Baiana que passou a infância no município de Serrinha, a musicóloga e educadora, com 83 anos, muito respeitada na área, ainda se dedica à pesquisa da cultura do brincar e a música da infância. Ela foi a idealizadora da organização não governamental “A Casa das Cinco Pedrinhas” dedicada à pesquisa e documentação da cultura da criança. Falando um vocabulário regional, ela explicou porque acredita que a televisão foi tão nociva e, ao mesmo tempo, como pode ser otimista em relação ao futuro.
Portal Unicamp – A senhora acredita que está havendo um retorno, ou mais interesse em relação aos temas da cultura popular?
Lydia Hortélio – A cultura do brincar está voltando. Quando eu comecei, em 1979, eu não tinha companheiros e hoje tem muita gente. A situação é clamorosa, é uma lástima, nas escolas não tem cultura da criança. Não tem Brasil, décadas de televisão desmontaram este país. Eu conheci outro Brasil em que a gente se reunia pra cantar, havia cantor de banheiro.
PU – As pessoas não cantam mais?
Lydia Hortélio – Não. Os adultos não cantam e as mães não sabem sequer uma cantiga de ninar.
PU – Os alunos que chegam à universidade e serão professores também não tiveram essa experiência na infância...
Lydia Hortélio – A situação é essa mesma, por outro lado tenho muita esperança, é o ponto da virada. Esse encontro aqui, por exemplo, é um sinal significativo, muita gente interessada, mesmo porque isso está no corpo da gente se você chama, vem a vontade de cantar de dançar, de dar a mão para a roda. É muito natural entre nós. Eu faço pesquisa na zona rural, no sertão da Bahia. Recentemente fui ver um grupo de meninos do grupo de extensão da Filarmônica de Serrinha, tocando flauta doce. Eu tinha feito uma pesquisa naquele lugar mesmo, onde havia três bandas de pífano. Vi os meninos com a flauta doce e fiquei um pouco chocada. Acabaram aquelas festas. Antes era assim: tinha a festa e tinha as rezas no terreiro de casa. As mulheres cantavam, as mães levavam um bebê no braço e dois dependurados na barra da saia e todo mundo cantava. Havia uma educação musical espontânea, os meninos cresciam naquele tecido musical da comunidade.
PU – Hoje você vem para a escola e é preciso uma lei que obrigue a educação musical e ainda assim ela não existe.
Lydia Hortélio – Não existe porque as professoras não sabem cantar uma cantiga. São meninas que nasceram depois da televisão, as professorinhas de hoje. Se você encontra uma pessoa mais velha ou se encontrar professoras leigas, aqui é mais difícil, mas lá no nordeste tem muito, elas sabem muito e fazem a alfabetização cantando e ainda escrevendo as cantigas que sabem cantar. É uma exceção. Mas ainda assim vejo com muita alegria esse encontro aqui e esse entusiasmo dessa moçada para aprender a música da infância. O repertório é vastíssimo. No lugar de onde eu venho eu comecei a levantar a música da infância, há 40 anos. Já levantei mais de 600 brinquedos com música lá no meu município. Eu dividi o século 20 em quatro partes e de 25 em 25 anos fui buscar informantes. Você não avalia a riqueza. Eu não tenho notícia se existe outro município no Brasil que tenha feito isso. Seria uma maravilha. Imagine que, com a diversidade étnica, num lugar o acento é mais indígena, em outro lugar é mais africano, em Santa Catarina, no Sul, é mais ibérico. A riqueza de música que tá aí calada... Esperando que a gente tire o verso.
PU – A senhora sugere que a criança tem isso naturalmente, de querer cantar e entrar na roda, mas precisa ter alguém que facilite o processo. Esse é o papel do professor?
Lydia Hortélio – A gente deixou que a televisão tomasse o lugar da gente. Hoje tem os aparelhinhos (eletrônicos) com toda música que não corresponde às estruturas da infância, música de adulto. E não é a melhor música de adulto que chega.
PU – Qual é o risco para o futuro das crianças? 
Lydia Hortélio – Eu não sei dar receita para ninguém, mas eu sou apaixonada por música. Eu preciso de música pra viver, eu canto muito naturalmente mais do que eu falo. É mais fácil eu cantar. Então quando a mãe, o pai ou a tia estão perto do menino, o que a gente passa é esse gosto pelo cantar e ele canta também. Como professor de música, querendo ensinar, a criança toma distância, não quer. O que ela quer é alegria, e se a gente chega com a alegria da música a gente conquista o menino. Eu acho que cada um, no lugar em que está, pode fazer alguma coisa. O que eu não acredito é numa educação musical na escola, quando vem um professor uma vez na semana. É muito pouco, o menino não ouve música, não canta e de oito em oito dias vem um professor que, durante uma hora “de relógio” quer ensinar. É o professor de classe, ele é que tem que cantar. Porque que não se pode cantar numa aula de matemática, me diga por que não? Só a escola diz não, e a escola não está com nada. A alegria é necessária no Brasil. É preciso ter infância. Essa é a direção, eu acho.

http://www.unicamp.br/unicamp/ju/653/musica-e-cultura-do-brincar

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